Introdução
A artilharia de campanha provou ser, ainda, elemento fundamental para a conquista de objetivos militares, como podemos observar na guerra entre Rússia e Ucrânia. Esse conflito demonstrou a utilização de grande número de tiros de artilharia executados por dia, o que sinaliza a importância desse tipo de apoio de fogo.
O terreno em que ocorre esse conflito favorece a utilização de meios blindados e mecanizados. Nesse contexto, a artilharia autopropulsada é a mais adequada para realizar o apoio de fogo aos elementos de manobra. Uma das principais dificuldades enfrentadas por essa tropa é o uso massivo de Sistemas de Aeronaves Remotamente Pilotadas (SARP), que causaram grandes baixas às tropas blindadas dos países contendores desde o início do conflito. Trouxeram para as posições de artilharia os “olhos do inimigo” e, com ele, o perigo de deslocar-se ou ocupar as posições de tiro de maneira displicente.
A possibilidade de empregar meios aéreos em proveito do planejamento, reconhecimento e aquisição de alvos aumenta sobremaneira a superioridade da tropa em relação ao inimigo que não os possuem. Esses meios podem ser aeronaves tripuladas ou não, de pequeno ou grande porte, e que têm a capacidade de provocar prejuízos significativos à tropa adversária se combinadas com poder de fogo. Isso se deu, por exemplo, pela utilização dos chamados drones durante a primeira invasão russa na Ucrânia em 2014, quando os russos utilizaram esse artifício para observar e designar alvos para a artilharia, causando grandes baixas ao Exército Ucraniano.
Outra forma de utilização de SARP é da forma “kamikaze”¹, como é o modelo Shahed-136, de origem iraniana, que pode transportar cerca de 40 kg de explosivos, podendo alcançar alvos estratégicos. No Brasil, esses artefatos receberam a denominação de Munições Remotamente Pilotadas (MRP), enquadrados em um Sistema que deu origem à nomenclatura SMRP. Com isso, o emprego de Sistemas de Aeronave Remotamente Pilotada (SARP)² pelo inimigo exige diversas medidas de segurança e procedimentos para aumentar a sobrevivência das baterias de artilharia autopropulsadas, consideradas um alvo altamente compensador.
Nesse sentido, é importante a reflexão sobre as atualizações e novos elementos que são inseridos nos conflitos, bem como o desenvolvimento de capacidades em nosso exército para enfrentar essas novas realidades.
Os sete fatores determinantes da capacidade (DOAMEPI)
1) Doutrina
O manual de campanha EB70-MC-10.361 Reconhecimento, Escolha e Ocupação de Posição do Grupo de Artilharia de Campanha, de 2021, prevê a elaboração de linhas de ação para a manobra da Bateria de Obuses por meio de oito tarefas, as quais sinalizam ao comandante de subunidade reconhecer o terreno e planejar a melhor forma de manobrar os órgãos da bateria, adequando-se ao terreno com base nas necessidades da missão e levando em conta o material de apoio de fogo empregado. Possibilita também, a designação de uma Região de Procura de Posição (RPP) de forma a facilitar o planejamento, sem impor uma forma fixa para os limites da RPP.
A Viatura Blindada de Combate Obuseiro Autopropulsado (VBC OAP) M109 A5 + BR é capaz de ocupar um número maior de posições, dentro da RPP. Graças à tecnologia embarcada, pode ocupar uma posição de tiro em poucos minutos e sair de posição após executar o disparo, de maneira a diminuir a eficiência de fogos de contrabateria. Por ter uma grande mobilidade tática, esse material precisa de uma RPP ampla para viabilizar a ocupação de várias posições de tiro.
Todas essas possibilidades, balizadas pela doutrina vigente, aumentam as chances de sobrevivência em combate da Linha de Fogo (LF); no entanto, a viatura blindada em questão é capaz de ser empregada por seções, o que não é previsto em nossos manuais. Essa opção de emprego aumentaria sobremaneira a sobrevivência da bateria de tiro e diminuiria uma das limitações da artilharia de campanha, que é a redução do apoio de fogo durante as mudanças de posição, como é feito no exército norte-americano.
O Caderno de Instrução CI 17-1/3 Maneabilidade de Viaturas Blindadas, de 2002, indica uma série de medida passivas a serem adotadas pelos combatentes blindados com a finalidade de diminuir a eficácia de um ataque aéreo. As ações remontam às instruções da formação básica, como a camuflagem e a distância entre as viaturas, pois um alvo compacto aumenta as chances de sucesso de um ataque aéreo.
As técnicas de progressão devem ser observadas e treinadas por todas as frações de viaturas blindadas, já que, até a ocupação da posição de tiro de artilharia, a LF precisa progredir obedecendo aos procedimentos corretos: evitando expor-se e neutralizando o inimigo quando possível, como preconiza o manual de Maneabilidade de Viaturas Blindadas:
Ao observarmos, de uma maneira mais ampla, a progressão de uma viatura blindada no terreno, verificamos que os princípios de escolha de posição, escolha de itinerário, camuflagem e outros aspectos terão os mesmos fundamentos utilizados pela tropa a pé. Basta, então, termos o cuidado de adaptar determinadas características das viaturas ao aproveitamento ideal do terreno (EXÉRCITO, 2002, p. 2-1).
O caderno IV das Instruções Reguladoras de Tiro com Armamento do Exército (IRTAEX), de 2017, Módulo de Tiro com Armamento em Viaturas Operacionais, apêndice D5, estabelece os exercícios de tiro que devem ser executados para a formação da guarnição no tocante ao armamento secundário. Podem ser complementados com o apêndice D2, onde é regulado o tiro antiaéreo. Com isso, a execução dos tiros de instrução com a guarnição aumenta a familiaridade, a segurança no emprego do armamento e a capacidade de responder frente a uma ameaça terrestre ou aérea contra a posição de tiro da LF.
Assim, observamos que a doutrina vigente contempla ferramentas adequadas para o desenvolvimento de capacidades na artilharia blindada, dando à Seção de Instrução de Blindados (SIBld) dos Grupos de Artilharia de Campanha Autopropulsados (GAC AP) condições de proporcionar a preparação das guarnições.
2) Organização
O Centro de Instrução de Blindados (CI Bld) forma, anualmente, operadores e instrutores de operação das VBC OAP M109, os quais retornam para suas Organizações Militares (OM) em condições de compor as SI Bld do GAC dentro do Quadro Organizacional (QO) das Unidades. A seção de instrução das OM é responsável por multiplicar as competências adquiridas no Centro através dos treinamentos para operadores e capacitação de elementos da guarnição, contribuindo para que o processo de difusão do conhecimento, preconizado na Diretriz de Blindados, seja alcançado da melhor forma possível.
3) Adestramento
O adestramento de uma subunidade de artilharia está enquadrado no Adestramento Básico, realizado após o período de qualificação. Essa fase disponibiliza uma importante oportunidade de desenvolvimento do espírito de corpo e liderança, segundo SIMEB, 2019:
6.5.1.1 O Adestramento Básico, que abrange as atividades de treinamento coletivo para o combate, de acordo com a base doutrinária da OM, desenvolve-se até o nível Unidade. Constitui-se na mais importante oportunidade de desenvolvimento da Liderança Militar, quando os oficiais e sargentos praticam as atividades inerentes ao Comando de suas frações e ao cargo que desempenham, num ambiente de imitação da guerra (EXÉRCITO, 2019, p. 6-6).
De acordo com o SIMEB, deve-se priorizar o adestramento das pequenas frações em detrimento às de maior escalão, o que sinaliza a atenção que se deve dar a procedimentos básicos de progressão inclusive em “escolas de fogo”, onde o objetivo de adestramento é desencadear tiro sobre zona, por exemplo. O Centro de Adestramento Sul (CA-Sul) realiza o adestramento de procedimentos dos subsistemas de artilharia, onde são simulados fogos indiretos, possibilitando a correção pelo observador e os trabalhos para o tiro com a central de tiro e a linha de fogo, porém com esta em posição estática, pois o deslocamento não é alvo de adestramento.
Anualmente, oficiais brasileiros realizam o curso de comandante de subunidade das armas no Exército Argentino. Uma das atividades desse curso é ensinar os alunos a conduzir o adestramento da subunidade, além das atividades logísticas e administrativas, inclusive com exercícios avaliados no terreno à frente da fração que está comandando, facilitando a inclusão de treinamento de Táticas, Técnicas e Procedimentos (TTP) no âmbito da fração.
Com isso, é necessária a observância do adestramento de subunidade, principalmente do subsistema LF no tocante a deslocamento com blindados e medidas defensivas contra os vetores aéreos. É importante criar a “mentalidade de blindados” em todas as tropas de apoio à tropa blindada e mecanizada de manobra, sob o risco de colocar a conquista dos objetivos em risco.
4) Material
Com relação ao material utilizado pela artilharia autopropulsada, o obuseiro M109 A5 + BR dispensa apresentações, pois demonstrou ser uma plataforma consolidada entre os blindados de apoio de fogo. Uma das características mais marcantes da versão adquirida pelo Exército Brasileiro é a possibilidade de entrar e sair de posição com rapidez, além de receber os comandos de tiro de forma digitalizada através do Sistema Gênesis.
A defesa da posição de bateria e a defesa antiaérea orgânica podem ser realizadas com o armamento secundário do blindado, a metralhadora .50 polegadas. No entanto, esse armamento não é eficaz no engajamento de SARP, exigindo do atirador preparo específico na operação e no emprego da metralhadora.
Com a aquisição de Viatura Blindada Transporte Especializado Remuniciadora (VBTE Remn) M992 para os GAC AP, a LF ganha pelo menos mais dois atiradores de metralhadora, tendo em vista a dosagem de uma Remn para cada obuseiro. O aumento do volume de fogo contra vetores aéreos pode ser solucionado adotando-se medidas como a adição de mais um armamento ao obuseiro, aos moldes do Exército de Israel.
5) Ensino
Nas escolas de formação (AMAN e ESA) são ensinados os fatores de seleção para a posição de tiro. Porém, os procedimentos específicos de deslocamento com obuseiro autopropulsado fazem parte de um assunto com menor importância a ser treinado com o aluno, tendo em vista a grade curricular que deve ser cumprida até a formação.
O CI Bld inseriu pequenos exercícios táticos nos cursos de operação, para contextualizar as matérias ao que será executado no combate, contribuindo para o ensino por competência e facilitando a andragogia. Esse Centro de Instrução possui também o Estágio Tático de Blindados Sobre Lagartas, no qual são praticados exercícios táticos até o nível subunidade. Contudo, ainda não contempla o módulo linha de fogo de artilharia, pois dificilmente uma bateria de artilharia estaria em proveito de uma Força Tarefa (FT) valor subunidade.
6) Pessoal
No tocante ao pessoal, a LF sofreu uma reorganização das funções com a aquisição da versão M109 A5 + BR, pois o espaço interno na viatura não comporta muitos serventes. No entanto, o pessoal remanescente da organização das peças de versões anteriores do obuseiro foi incorporado à viatura VBTE Remn, necessitando uma readequação nas habilitações de alguns elementos em Quadro de Cargos Previstos (QCP). Um exemplo é a adaptação da qualificação do motorista de blindado e atirador de metralhadora para a Remn.
7) Infraestrutura
As infraestruturas dos GAC AP estão sofrendo alterações para melhor se adequarem às necessidades que o novo blindado de artilharia requer. A instalação da SIBld é uma estrutura que concentra os operadores/instrutores que contribuirão para a formação e adestramento das guarnições das Organizações Militares (OM), contribuindo para a padronização de procedimentos e conservação da frota, tendo em vista o aumento da perícia dos operadores após os treinamentos realizados na OM.
CONCLUSÃO
A evolução do combate e a inserção de múltiplos dilemas para os atores da guerra exigem que as tropas estejam preparadas para condutas, sem abrir mão do adestramento básico. Faz-se necessário estarmos atualizados com a doutrina militar vigente e atentos para a necessidade de desenvolver novas capacidades, adaptando-nos quando preciso.
Observando os conflitos atuais, identificamos a transparência do campo de batalha com a atuação de SARP e mais uma vez confirmamos que uma das principais ameaças à tropa blindada é, atualmente, os vetores aéreos. No entanto, essa tropa ainda é decisiva no combate. Com isso, percebemos que a artilharia autopropulsada necessita aprimorar suas capacidades e atualizá-las de acordo com novas demandas e ameaças que estão surgindo.
Percebemos que a revisão e a aplicação de técnicas básicas ainda podem fazer a diferença em combate, como as técnicas de progressão com blindados que devem ser treinadas por toda a tropa blindada, inclusive pelas tropas de apoio. Essas técnicas estão previstas no Caderno de Instrução CI 17-1/3 Maneabilidade de Viaturas Blindadas. É importante, também, a execução de todos os tiros pela guarnição previstos na IRTAEx, necessitando ser inserido, nessa instrução reguladora, o tiro do apêndice D2, Caderno IV.
Outra atualização necessária é a possibilidade de o material M109 A5 + BR ser empregado por seções aos moldes do que é feito com o M109 A6, o que será facilitado com a utilização plena do Sistema Gênesis. Assim, aumenta-se a dispersão da LF e, consequentemente, a descompactação do alvo para o vetor aéreo. Referente à organização, vê-se como primordial o pleno funcionamento das SIBld dos GAC AP, tendo em vista essa seção ser peça fundamental no processo de formação e adestramento das guarnições e difusora de conhecimentos sobre blindados, dando continuidade ao processo de solidificação das competências da tropa blindada.
Durante o adestramento da artilharia autopropulsada, deve-se, além de executar todas as missões previstas em Programa Padrão (PP), observar o que preconiza o caderno de instrução de Maneabilidade de Viaturas Blindadas, criando uma “mentalidade de blindados”. Essa atividade deve ser conduzida pelo comandante de subunidade, o que auxiliará na interiorização de TTP pela tropa, além de contribuir para o espírito de corpo e o exercício da liderança.
A aquisição de novas viaturas para a LF dos GAC AP possibilitou um salto em termos de rapidez no apoio de fogo. No entanto, o número de viaturas transformou esse subsistema em um alvo compactado, caso não sejam tomadas as medidas passivas de proteção. O armamento secundário das viaturas blindadas não facilita a execução da proteção antiaérea da LF e, por isso, é necessário um estudo sobre o calibre mais adequado, combinação de armamentos ou inserção de mais um armamento de menor calibre à viatura, como são as VBC OAP do Exército Israelense (ver Fig. 7), por exemplo, possibilitando assim o volume de fogo necessário para a proteção orgânica antiaérea.
No tocante à educação, as TTP de progressão e medidas passivas de proteção antiaéreas são treinadas e difundidas nos estágios táticos do CI Bld. A artilharia blindada, que já conta com vagas de Observadores Avançados (OA) no Estágio Tático sobre Lagartas, poderá, futuramente, ter sua participação incrementada com uma Seção no escopo dessa atividade. Faz-se necessário, também, um estudo para adequação do QCP dos GAC AP, tendo em vista as novas aquisições de materiais e necessidades de habilitações para a guarnição, contribuindo para que a LF esteja em condições de pôr em prática as novas capacidades.
A infraestrutura dos GAC AP já estão sofrendo adequações à realidade da tropa blindada com a construção de ambientes adequados para a instalação de SIBld, o que facilitará o processo de difusão de conhecimentos e adestramento da tropa, favorecendo a manutenção do estado permanente de prontidão. Portanto, é fundamental a observância da evolução do combate e uma análise crítica da realidade de nossas tropas, para que possamos identificar necessidades e com isso termos a projeção das capacidades que queremos desenvolver, utilizando-se dos fatores determinantes para apresentar as aptidões requeridas.
Tiago Alvez Ebling – Maj
Intrutor do CI Bld
Daniel Bernardi Annes – Cel
Comandante do CI Bld